Eu não sei por que cargas d'água comecei a falar sobre o livro do Saramago na quarta-feira. Não me lembro mesmo. O fato é que eu me lembrei do livro "As intermitências da morte".
Acho q antes preciso dizer q eu amo Saramago. Q acho o cara muito foda e q o q ele escreve faz a gente se sentir minúsculo. Seria o máximo ter um programa de computador q mostrasse a
cabeça desse homem por dentro, como se organizam os pensamentos, como as associações se dão. Enfim, Saramago é um gênio. Técnico, profundo, poeta, crítico, apaixonado, maluco.
Adoro.
Daí eu me lembrei do livro. Q é mesmo lindo. Eu já disse pra vários amigos meus (músicos) q se trata de uma ode de amor aos músicos, por incrível q pareça. Todos deveriam ler. É lindo, de
arrepiar, de fazer chorar. Encontrei na internet uma entrevista antiga do Saramago, da época do lançamento do livro. Muito legal.
Ontem fui na casa de um querido amigo, saxofonista. Eu havia emprestado o livro pra ele, e obviamente ele não leu. Então peguei de volta, pra reler, pra sentir o livro de novo nas minhas mãos, pra vivenciar de novo as sensações, enfim.
E essa vida é mesmo engraçada... como diz uma grande amiga, "o mundo é uma gotinha de porra, está todo mundo ali". As coincidências nos cercam, sempre. Não só com as pessoas - o q me faz pensar q o mundo no fundo não é tão grande assim, e q todo mundo se conhece ou vai se conhecer um dia -, mas com circunstâncias tb.
Enfim (adoro enfim!), peguei o livro e folheei. Eu tinha grifado umas partes... a caneta (coisa MUITO rara, odeio riscar meus livros com caneta). Mas Deus sabe lá o faz, acho q isso pode significar q, se um dia marquei com caneta, devia ser algo importante. Pra q eu não apagasse, essa mania minha de primária de apagar e esquecer. E, principalmente, pra q eu não me esquecesse. Ou talvez foi só relaxo mesmo. Vai saber... são os insondáveis mistérios da vida.
Pra quem nunca leu o livro, LEIA. Vou falar de novo: LEIA. Leia hoje. Comece agora. Não é o melhor do Saramago, mas Saramago é bom até qdo é ruim (e esse está longe de ser ruim). É a história de um país fictício em q as pessoas deixam de morrer. A morte (personagem principal) se recusa a continuar trabalhando, já q todos reclamam dela. Obviamente, as conseqüências da ausência da morte são inúmeras, pra Igreja, pra previdência, pras companhias de seguro, enfim, pra uma galera. E Saramago desfila com muito humor e com certa acidez por todos esses campos.
Ocorre, entretanto, q o livro muda na metade. Depois de analisar e explorar os temas sociais, Saramago muda completamente o foco (parece até outro livro) e se permite falar de uma história de amor. Entra em cena um personagem, um violoncelista (mas que coisa). Os personagens do Saramago são assim, não têm nome (o Fernando Meirelles disse em seu blog q isso foi difícil na hora de filmar Blindness - baseado no Ensaio sobre a cegueira, best book ever -, pq era foda um chamar o outro de "o primeiro cego", "velho da venda preta", "rapariga dos óculos escuros"). Bom, digressões à parte... os personagens, então, não têm nome (o q eu acho fabuloso, arquetipicamente falando). E entra em cena o violoncelista. E daí o livro faz vc se arrepiar, chorar, respirar fundo e achar o mundo lindo.
Comecei a reler hoje. Porque Saramago é foda. Porque reler um livro é uma das experiências mais legais da vida. Porque eu tô mesmo precisando de uma boa dose de palavras inteligentes na minha vida (tenho ouvido muita merda).
Era isso. Abaixo, um pouco de Deus na vida da gente. Mas não precisa ler, se não quiser. Aliás, se pretender ler o livro, pode ser spoiler.
Não é, não. Não chega a tanto.
Trechos marcados a caneta, há 2 anos e 5 meses atrás (eu juro!!!):
"(...) as palavras, se não o sabes, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de
sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados (...)"
"(...) um violoncelo não é como um piano, o piano tem as notas sempre nos mesmos sítios, debaixo de cada tecla, ao passo que o violoncelo as dispersa a todo o comprido das cordas, é preciso ir buscá-las, fixá-las, acertar no ponto exacto, mover o arco com a justa inclinação e com a justa pressão (...)"
"Momentos de fraqueza na vida qualquer um os poderá ter e, se hoje passamos por eles, tenhamo-los por certos amanhã."
" (...) às violas, que são os contraltos da família dos violinos, aos violoncelos, que correspondem ao baixo, e aos contrabaixos, que são os da voz grossa."
"Aquele é o seu homem, um músico, como o são os quase cem homens e mulheres arrumados em semicírculo diante do seu xamã privado, que é o maestro, e que um dia destes, em uma qualquer semana, mês e ano futuros, receberão em casa a cartinha de cor violeta e deixarão o lugar vazio, até que outro violinista, ou flautista, ou trompetista, venha sentar-se na mesma cadeira, talvez já com outro xamã a fazer gestos com o pauzinho para conjurar os sons, a vida é uma orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um paquete titanic que sempre se afunda e sempre
volta à superfície (....)"
"(...) a vida tem destas e doutras injustiças, veja-se este caso da mão esquerda, que tem à sua conta o trabalho mais pesado do violoncelo e recebe do público muito menos aplausos que a mão
direita."
"(...) coitados dos dicionários, que têm de governar-se eles e governar-nos a nós com as palavras que existem, quando são tantas as que ainda faltam (...)"
"O homem não a conhecia a ela, mas ela conhecia o homem, passara uma noite no mesmo quarto que ele, ouvira-o tocar, cousas que, quer se queira, quer não, criam laços, estabelecem uma harmonia, desenham um princípio de relações (...)"
"O violoncelista começa a tocar o seu solo como se só pra isso tivesse nascido. (...) toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece (...)"
"(...)E o fim disto, qual vai ser, Ainda estamos no princípio."
"(...) e quando já não tiverem mais nada que dizer ou quando as palavras começarem a ir por um lado e os pensamentos por outro, então se verá se algo poderá suceder que valha a pena recordar quando formos velhos."
Ai, ai... Saramago é foda. Vida longa a José Saramago!
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