Era uma vez uma princesa. Mais uma princesa, que o mundo tá cheio delas, mas cada uma se acha especial, porque acredita no que os pais dizem. Essa princesa se chamava Ariel, e se achava especial por vários motivos. Era ruiva, em um mundo de princesas loiras e morenas. Cantava lindamente, sua voz encantando multidões, pois era uma sereia. Seu pai era um rei justo, e um pai presente, e não ausente como a maioria dos pais dos contos de fadas. E ela tinha um lindo rabo de peixe, multicolorido.
Mas a princesa não era feliz. Ah, não era. Porque, se fosse feliz, nem valeria a pena contar a história dela. Perceba: que graça tem a história da princesinha feliz, sem conflitos, fútil, que encontra logo o príncipe perfeito e é feliz com ele para sempre? Nananinanão. As princesas interessantes são as infelizes.
E são também as que chamam a atenção dos príncipes mais interessantes. Ou mais descontrolados. Porque os príncipes normais, bobões, simplezinhos, se interessam pelas princesas normais, bobonas, simplezinhas. Até porque eles não entendem o que as princesas infelizes e complexas dizem. Enfim. Os príncipes profundos, malucos, diferentões, esses se interessam pelas princesas infelizes. E é aí que mora o perigo.
Ariel não se sentia feliz no seu mundo. Queria saber o que tinha do lado de lá. Por ser uma sereia, queria saber como era ser humana. Como era andar sobre duas pernas. Como era respirar ar. E viu no príncipe encantado a chance de ganhar o mundo. Não ouviu ninguém, os protestos da família, das amigas, do mundo. Tanto peixe aqui pra casar e essa menina quer um humano! Pra quê? Amor, dizia ela. Mentira. Queria era ver o mundo.
O príncipe, por sua vez, ficou maravilhado com Ariel. Que voz! Que cabelos! Quanta vida nessa pequena sereia... Talentosa, especial, linda, diferente, inteligente, e ainda por cima triste. Perfeita.
Casaram-se. O príncipe a levou para o seu palácio. Mas, para isso, Ariel teria que mudar. Não podia mais se arrastar com o rabão de peixe. Não podia mais cantar as canções do fundo do mar, que graça. Tinha que aprender a cantar as músicas da corte, as que ele gostava. Tinha que se portar como uma princesa da terra, não do mar. Tinha que pintar os cabelos, onde já se viu cabelo vermelho depois dos 20 anos?! Tinha que aprender a falar baixo, a não rir escandalosamente, a dormir na hora que ele queria e a acordar na hora que ele queria, para cumprir os compromissos de princesa sua esposa. Tinha que abandonar seus hábitos e hobbies antigos, seus amigos peixes, seus costumes bárbaros, tinha, principalmente, que fazer um regiminho, porque as princesas daqui da terra eram muito, mas muito mais magras do que as princesas do mar.
Ariel já não sabia mais quem era. Não se reconhecia mais sereia, mas também não era humana. Não se lembrava mais das canções do mar, de seu pai, dos peixes e das outras sereias. Mas também não era mais desse mundo, da corte, dos pajens e das amas, dos vestidos e leques, das fofocas e das intrigas. Não podia voltar para o mar. Mas também não podia mais permanecer nessa vida. Não amava o príncipe, nunca o amara, mas agora não podia suportar sequer sua presença. Que fazer?
A resposta veio por meio de um amigo do príncipe. Um lugar ideal para se trabalhar, um ótimo salário, uma vida fácil, oportunidades. Público, plateia, aplausos, uma artista. Teste do sofá. O príncipe descobriu. Expulsou-a do castelo. O pai não a aceitou mais em casa. Nem sereia nem humana, Ariel não teve escolha.
Os cabelos voltaram a ser ruivos. Ela diverte os outros com sua beleza. Mas já não é mais a mesma, nunca será. Passa os dias a pensar em seus amigos peixes, em seu pai, até mesmo pensa na vida da corte, que qualquer coisa é melhor do que esse exílio. Quando o público vai embora, quando as luzes se apagam, quando a ração do dia é entregue, Ariel chora lágrimas mornas, lembrando-se da princesa especial que um dia foi.
Foto: Dina Goldstein.
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