Então é assim. O ser humano é complicado, disse meu amigo.
Um universo dentro de cada um. E a gente nunca consegue entender esses
universos paralelos. Mas não são exatamente paralelos. Às vezes eles se cruzam.
E daí é tão gostoso. Não precisa tentar entender. A gente nunca vai conseguir,
mesmo. Se a gente conseguir só curtir esses momentos em que os universos se
encontram, se a gente conseguir não pensar, só sentir, a gente consegue ser
feliz. There is no spoon.
Ele me encanta de um jeito que eu não consigo explicar. Não
consigo. Eu olho os dedos da mão dele e não consigo nem dizer exatamente o que
eu sinto. Aqueles dedos quadrados e brancos. A gente conversa por horas
enquanto o sol pensa em sair do seu esconderijo, a gente fuma mil cigarros, o
céu vai mudando de cor, a noite passa de quente pra fria, depois o dia amanhece
e esquenta de novo, e ele sua no meu travesseiro e o cheiro que sai da nuca
dele é a coisa mais gostosa do mundo, mistura de perfume com suor e xampu. Eu
olho pra ele e penso que eu sei um monte de coisas banais sobre ele, mas ao
mesmo tempo é como se fosse um desconhecido, quem é esse menino, quem é esse
homem, quem é esse carma na minha vida, quem é esse universo paralelo que
quando tromba com o meu me deixa assim, às vezes entregue, às vezes na
defensiva, mas sempre um pouco louca.
Ele me abraça e coloca um som, e eu fico olhando a mão
branca dele tocando air guitar no meu travesseiro, e tem um sorriso besta que
se instala no canto da minha boca e não quer mais sair, mas eu não quero ficar
tão feliz, porque isso não significa nada, eu não sei o que isso significa, eu
não sei quem ele é, eu não sei o que ele pensa, eu não entendo o que ele quer,
eu nem entendo o que eu quero. Eu quero ficar aqui, ouvindo esse som, ouvindo
ele cantar na minha nuca, olhando aqueles dedos quadrados e brancos e não quero
pensar em nada, no que vai acontecer amanhã, no que aconteceu há dois anos, eu
só quero conseguir curtir esse momento, there is no spoon, não existe nada no
mundo, só essa sensação, então eu fecho os olhos e o maldito sorriso continua
no canto da minha boca. Porque esse sorriso é um trouxa, esse sorriso não sabe
de nada, não sabe da novela mexicana que essa história é, não sabe que, ao
mesmo tempo, não tenho nada pra contar, porque eu não entendo nada, eu não
consigo pensar, eu só sei que quando ele tá aqui é bom demais, e isso basta. Eu
não sei quando ele vem de novo, às vezes eu acho que eu sou uma trouxa nessa
história, mas quando eu vejo ele chegando eu esqueço de tudo, eu só quero que
ele entre logo no meu carro, eu só quero sentir a pele quente dele na minha,
quero passar os meus dedos naquele cabelo, quero aquela boca, mas não me
entendam mal, parece papinho de apaixonada, mas não é, as coisas não são tão
simples assim, eu não consigo dar nome pra isso.
Eu não consigo pensar racionalmente. Eu quero pensar em
todos os defeitos dele pra me convencer de que essa história é uma furada, de
que eu tô perdendo tempo. Mas, quais são os defeitos dele? Quais são os meus defeitos? Quais são os
defeitos que importam? Nada me importa na vida quando eu sinto a barba dele na
minha nuca, nada interessa quando ele olha no meu olho e dá aquele meio sorriso,
nada existe quando a gente tá debruçado na sacada falando qualquer merda e a
tatuagem do braço dele encosta no meu braço e eu fico mole. E depois, quando
ele vai embora, a vida segue, eu tenho provas pra corrigir, eu tenho amigos pra
receber, eu tenho planos pra fazer, a vida dele segue lá e a minha segue aqui,
daí eu tô no meio de um conselho de classe e nem lembro que ele existe, eu tô
com os meus colegas falando de trabalho, o meu coordenador está falando algo importante
e eu me sinto viva, trabalhando, tentando fazer a diferença, daí eu lembro dele
me chamando de “dona do morro” e começo a dar risada do nada, e daí eu volto ao
trabalho com aquela merda daquele sorriso de canto de boca. Eu tô de boa na minha
casa assistindo Fera Ferida no Viva, e eu nem lembro que ele anda sobre o
planeta Terra, daí me vem uma imagem dele em cima de mim e eu penso que ele
poderia estar aqui, daí eu decido dormir, mas antes passo creme nos pés,
sorrindo. Tem momentos em que eu nem me dou conta de que ele está por aí,
andando e respirando, mas daí quando eu vejo ele chegando eu não consigo mais
lembrar por que é que eu deveria estar brava, eu só quero que ele acenda um
cigarro e me conte alguma história engraçada ou fale aquelas frases sem sentido
que ele tira do nada. Daquela cabeça louca, que eu nunca vou conseguir
entender.
Acho que não preciso entender. De perto, ninguém é normal. E
bem de pertinho ele é muito maluco. Mas eu adoro. E eu também sou. E ele canta
baixinho, e depois fala uma frase de um vídeo, e depois a gente dorme, e depois
o dia amanhece e eu faço ele tomar um iogurte, e daí eu tenho milhões de coisas
pra fazer, e o céu está azul, e a minha família é linda, os meus amigos são
incríveis, a minha vida é boa demais, e eu sei que ele volta. E, quando ele
volta, o mundo para, mas ao mesmo tempo continua a rodar. E mais um capítulo da
minha novela mexicana favorita vai sendo escrito, e eu adoro.
O Neo diz que não acredita em destino porque não gosta da
ideia de que não podemos controlar nossas vidas. Mas tem coisas que não
acontecem à toa. E eu não quero controlar nada, não. Não quero. Não quero
pensar. Não quero teorizar. Quero só sentir. Quero entender que quem se dobra
sou eu, e não a colher, porque não existe colher. Não existe nada. There is no
spoon. E talvez a vida seja mais fácil assim.
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