terça-feira, 6 de maio de 2014

Eu sou do tempo em que circo tinha animais. Meus pais me levavam no circo, compravam pipoca, pirulito, tirávamos aquelas fotinhos que vinham num prisma pra gente ver olhando pra luz. Eu me lembro da serragem, do cheiro dos animais, da capa do mágico. Sou do tempo em que criança não precisava de cadeirinha pra andar no carro, andava no colo dos adultos mesmo, e isso não era crime. Sou do tempo em que as crianças brincavam de bola e andavam de bicicleta. Meu avô tinha uma chácara em Salto, e a gente ia pra lá todo fim de semana, nadava, andava de bike, chupava laranja do pomar, jogava bola na piscina e, depois do banho, jogava um jogo de baralho ou de tabuleiro, depois deitava na rede no escuro pra ouvir as estórias (com E) de medo que meu avô contava. Eu sou do tempo em que se escreviam cartas. Quando eu era criança, meus pais me levavam pra um hotel fazenda nas férias de inverno, eu fazia amigas e trocávamos cartas por algum tempo. Sou do tempo em que não havia celular: celular era coisa futurista, telefone no carro passava em filme quando algum personagem era muito rico. Se a pessoa não estava em casa, a gente esperava pra falar com ela, e ninguém morria por isso. Sou do tempo em que não havia Internet, e a gente fazia as pesquisas escolares nas bibliotecas públicas, em folhas de papel almaço (eu, que sempre fui nerd e nunca fui rica, morria de vontade de ter a Enciclopédia Barsa, ou mesmo a Larousse, mas meus pais nunca puderam comprar; e as minhas notas sempre foram as melhores da classe, ou sempre estiveram entre as melhores). Eu sou do tempo em que ficar de recuperação na escola era uma coisa gravíssima. Sou do tempo em que os filhos apanhavam dos pais, e eu apanhei pra cacete, de cinta, de chinelo, de tapa mesmo. Até na boca. Nunca adiantou, basta ver minha boca suja de hoje. Mas apanhei pra caralho. Eu sou do tempo em que os adolescentes faziam bailinho nas garagens, e as meninas ficavam sentadas encostadas na parede, e os meninos nos tiravam pra dançar. A gente dançava músicas lentas, tipo Bryan Adams ou as baladas do Guns, não era funk nem arrocha. Sou do tempo em que a gente trocava bilhetinhos na aula, não SMS. Sou do tempo em que as pessoas que nunca tinham beijado na boca eram chamadas de BV. Sou do tempo em que as pessoas colecionavam papel de carta, minha mãe comprava pra mim na feira todo sábado, e eu tinha várias pastas. As meninas trocavam papel de carta, pulavam elástico (eu era foda nisso, creiam), brincavam de Barbie, colavam decalques no caderno (e eu sempre estragava os meus, deixava demais na água). Sou do tempo de tomar chá com a avó, e molhar a bolacha maisena no chá até ficar molinha. Sou do tempo em que unha vermelha era coisa de biscate, mas eu sempre adorei, desde pequena. Sou do tempo em que gravávamos músicas em fitas K7; ficávamos esperando aquela música linda tocar na rádio, daí corríamos e soltávamos o pause, e o começo da música sempre vinha zicado, com propaganda da rádio, ou porque perdíamos o começo, mesmo. Quando queria uma letra de música, a gente comprava o vinil (ou mesmo a fita, na feira), ou então, quando a grana tava curta, comprávamos aquelas revistinhas que traziam as músicas cifradas. Ou, pior, ficávamos dando pause na fita K7 e escrevendo a letra. Sou do tempo em que saber a letra de Faroeste Caboclo de cor e salteado era uma coisa de ostentação, para poucos (eu sabia). Sou do tempo de chorar "por amor" ouvindo as trilhas sonoras internacionais das novelas da Globo. Sou do tempo em que namorada e namorado não ficavam sozinhos em casa jamais, o que nunca nos impedia de fazer várias coisas que nossos pais nem imaginavam. Sou do tempo em que se fumava nas baladas, e a gente chegava em casa com o sutiã cheirando a cigarro. Sou do tempo em que se saía do cinema e se acendia um cigarro, em plena praça de alimentação do shopping.
Eu olho assim, bem pra trás, nessa véspera de aniversário, e vejo que as coisas eram diferentes até um certo ponto. Depois dos 18, parece que não tem muita diferença, pelo menos não no comportamento, apesar da tecnologia. Eu bebia, passava mal, vomitava, daí aprendi a beber. Eu me apaixonei, desapaixonei, apaixonei de novo, desapaixonei de novo, tantas vezes, e fiz tantas burradas, tantas cagadas, mas também tantas coisas lindas. Vivi diferentes vergonhas, e momentos maravilhosos. Perdi parentes amados, e a vida seguiu em frente. Conheci muita gente, e deixei vários pelo caminho, pedindo carona, ou mesmo abandonados. Alguns eu queria recuperar; outros, preferia que morressem. Aprendi a trabalhar, a ganhar meu dinheiro, mas ainda não aprendi a gastar direito. Conheci lugares, cantei, dancei, sapateei, atuei, fiz amigos, perdi amigos também, gostei de muita gente, mas não tenho bem certeza de ter amado.
Eu sou do tempo em que a gente fazia um exame de consciência na véspera do aniversário. E sou do tempo em que aniversário era coisa muito importante, era um dia especial. Tem coisas que nunca mudam. Ainda gosto dos jogos de baralho e tabuleiro, ainda acho recuperação uma coisa gravíssima, ainda adoro unhas vermelhas, ainda gostaria que o cara me tirasse pra dançar uma balada do Guns, ainda tenho pudores e tabus com meus pais em relação a sexo, ainda sei a letra de Faroeste Caboclo, ainda acho meu aniversário um dia muito importante, por mais que a vida insista em me fazer virar adulta e queira me mostrar que o dia 7 de maio é somente um dia do ano, comum, e que me encha de tarefas cotidianas, e que não dê tempo pros amigos fazerem mais do que mandar uma mensagem nas redes sociais, e que me faça ir atrás de arrumar meu chuveiro bem nesse dia, ou de ir na consulta com a ginecologista, ou que me deixe de presente pacotes de provas pra corrigir. Apesar de tudo isso, amanhã ainda é o meu dia. Eu sou desse tempo, fazer o quê?

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